27 de março de 2008

CARACTERÍSTICAS DO REALISMO/NATURALISMO




O Realismo é uma escola literária declaradamente influenciada pelas tendências de sua época, tais quais o Positivismo, o Socialismo e o Evolucionismo. Movidos por essas filosofias e teorias, os autores dessa escola desejavam retratar o homem e a sociedade com precisão, sem ignorar nenhum de seus aspectos. Negavam os ideais da escola anterior, o Romantismo: não queriam mostrar a vida idealizada, e sim lados jamais revelado, como o cotidiano massacrante, o amor adúltero, a falsidade e o egoísmo humano, a impotência do homem comum diante dos poderosos.
Destaca-se por seu forte caráter crítico e objetivo: os realistas consideravam a subjetividade um empecilho à avaliação exata da realidade. Também foge do egocentrismo romântico, sendo os temas sociais muito correntes. Seus autores em geral defendiam a tese do Determinismo, segundo a qual o homem seria formado a partir de três fatores: o meio, a raça e o momento histórico.


Revelando a realidade sem distorções, evidenciando suas falhas, os autores realistas buscavam estimular a mudança das instituições sociais e dos comportamentos humanos. Os valores dessa escola literária refletiram-se em várias outras artes, como o teatro e a pintura.

O Naturalismo pode ser visto, de certa forma, como uma radicalização do Realismo. Seu principal foco era a observação extremamente fiel da realidade, e buscava, em suas obras, mostras através de exemplos que o homem é exclusivamente produto das vertentes do Determinismo. Uma das principais diferenças entre o Realismo e o Naturalismo é que enquanto o primeiro em geral destacava a psicologia de seus protagonistas, seus conflitos pessoas, o segundo os ignorava – seu foco “preferido” era o meio externo à personagem.


Dentre suas características mais marcantes estão o apego extremo à objetividade (descrições exaltadas de paisagens e personagens são desprezadas), a crença na razão (dando esta lugar à emoção, sugerindo frieza ou até mesmo crueza nas relações amorosas), o materialismo, o cientificismo (postura radical nos autores naturalistas), o determinismo e a presença de personagens patológicas, dotadas de temas que muitas vezes chocaram a sociedade da época, como homossexualismo, lesbianismo, incesto, taras sexuais, loucura, adultério, racismo e prostituição. Algumas das obras brasileiras de maior destaque dessa fase são “O Ateneu”, de Raul Pompéia; “O Mulato”, “O Cortiço” e “Casa de Pensão”, de Aluísio de Azevedo; e “Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha.

Poesias

A poesia realista não chegou a fazer grande sucesso: as obras de maior destaque dessa escola são escritas em prosa. Ainda assim, houve alguns autores realistas que utilizam-na para expressar seus ideais. Todas as seguintes poesias são de Raul Pompéia, e encontram-se reunidas no livro "Canções sem metro". Cabe ressaltar que na poesia realista o conteúdo tem mais valor que a forma.

Rosa, amor

O sorrir das virgens, e o adorável pudor, e a primeira luz da manhã.


Esta criança pensativa. Acompanha com a vista o revoar dos pombos; escuta o misterioso segredo dos casais pousados. Vive-lhe ainda no semblante a candura da infância e nos formosos cabelos o cálido aroma do berço. Súbito, duas pombas partem. Vão. Longe, são como pontos brancos no azul; o bater das asas imita cintilações: vão, espaço a fora, estrelas enamoradas.

A cismadora criança experimenta a vertigem do azul e a alma escapa, sedenta de amplidão, e voa ao encalço das estrelas.

Há noites de pavor nas almas, há belos dias igualmente e gratas expansões matinais, auroras de rosa como em Homero.

Há também nas almas o incolor diáfano do vidro.

Dinheiro, amor, honraria, sucesso, nada me falta. O programa das ambições tracei, realizei. Tive a meu serviço a inteligência estudiosa do Ocidente e a sensualidade amestrada do Levante. Tive por mim as mulheres como deusas e os homens como cães. Nada me falta e disto padeço. Todos dizem: aspiração! e eu não aspiro. Todos sentem a música do universo e a harmonia colorida dos aspectos. Para mim só, vítima da saciedade! tudo é vazio, escancarado, nulo como um bocejo.

E os dias passam, que vou contando lento, lento torturado pela implacável cor de vidro que me persegue.

Há, enfim, a coloração indistinta dos sentimentos, nas almas deformadas.

Veio de longe, muito longe, mísero! Teve outrora um céu, uma pátria, muitas afeições, a cabana da aldeia. Agora só tem o ódio. O ódio mora-lhe no peito, como um tigre na furna. Tiraram-lhe a pátria, a companheira, votaram-lhe à morte os filhos, as filhas à torpeza; deram-lhe em compensação... Mostrava a face preta, o sangue a correr. Quem são os teus algozes?

- Os homens brancos.

Ela odeia os homens brancos; odeia a torre aguda, ao longe, como um punhal voltado contra os céus: odeia o trem medonho de fogo e ferro, que muge e passa, troando, escândalo do ermo.

Raul Pompéia


Verde, esperança

A impetuosa alegria da terra, à passagem de Flora, a primavera verde, compromisso maternal do outono e da opulência.

Náufragos no mar.

Sem pão, sem rumo. Em roda, o gume afiado do horizonte, a reverberação do sol nas águas e o silêncio solene da calmaria. A vela do barco, flácida, pendente - imagem do abatimento. Ligeira viração depois; denso nevoeiro... quatro dias! sudário de brumas que envolve o barco, elimina o céu. Vão acabar assim, amortalhados na bruma. Um ramo, apenas, sobre as águas, um ramo cor da esperança. Salvos! Adivinha-se o continente salvador através da névoa e o panorama verde das florestas.


Raul Pompéia


Amarelo, desespero

Ouro e sol; ouro, o desespero da cobiça, sol, o desespero da contemplação: a cor dos ideais perdidos.

Sobre o leito, o cheiro mau das chagas era como uma antecipação da morte. Descamava-se a pele em crostas ásperas sobre o grude do pus. Ela morria, alcançada pelo sorteio inexorável da Peste. À porta, o anjo negro da maldição; longe, a espavorida caridade.

Ali, na parede, havia flores adornando um retrato de moço. Simples lembrança da Páscoa, flores da aleluia, colhidas numa escapada de amantes. Amor não faz quaresma... Cobertas de ouro as árvores... Ela também triunfante: ouro sobre o esplendor adorado do sexo... Agora fitava as flores secas. Junto dela, o filho, pequeno animal sem vontade, sem vida, que lhe chegava aos lábios um copo d'água.

Sobrara-lhe um filho nos desperdícios do passado, para vigiar-lhe a agonia. Ninguém mais, ninguém mais, nem Deus com ela: apenas as flores do desespero e aquele copo d'água de vez em quando, que ela sorvia como uma medicina amarga de lágrimas...


Raul Pompéia

Vermelho, guerra

Sangue, cólera, vingança, os hinos marciais, golpes, o incêndio, vermelho o manto dos tiranos e Marte, o astro dos combates.

Da casinha à beira-mar, olhos em febre, a velha mãe argüía a distância. Lá, mergulhara o vapor que lhe roubava o filho para a guerra. A tarde passa e a noite; a velha, imóvel, marmorizada na dor, como uma escultura do Stabat Mater. E vem a aurora, uma aurora brutal de chama e sangue. A mãe do soldado caiu como morta.

Ouvira, das bandas da aurora, um grito de morte e a voz perdida do agonizante era a voz do filho.


Raul Pompéia

O Realismo e o Teatro


A arte teatral, como qualquer outra, transforma-se com o passar do tempo. Variam os estilos de produção, organização e interpretação. Uma das mudanças mais importante ocorreu na segunda metade do século XIX, quando o teatro burguês substitui o idealismo romântico, que predominava até o momento, por histórias contemporâneas, com problemas reais de personagens comuns, condicionados pela ração social e pelo meio: o realismo começava a revelar-se no mundo teatral.


Os principais autores do realismo cênico rejeitaram a linguaguem poética, a declamação e a fala artificial – a linguagem excessivamente rebuscada das escolas anteriores ao Realismo foi ignorada também no teatro. Passou-se a utilizar a ação e os diálogos, adaptando o comportamento e a comunicação dos atores ao cotidiano. A encenação devia ser natural, o mais próxima possível da própria vida.
As mudanças ocorreram também nos próprios teatros: busca-se uma forma arquitetônica que privilegie boas condições visuais e acústicas. A partir disso, o diretos e os atores adquiriram novo valor diante da sociedade.

O principal inovador é o Teatro de Arte de Moscou. Com ele, surge todo um novo método de interpretação: o ator tem de incorporar a psicologia do personagem, fazer da vista deste a sua quando estiver no palco. Logo este método espalha-se por todo o mundo, sendo adotado por outras companhias teatrais.
O herói romântico dá lugar a pessoas comuns, que utilizam palavras comuns. Os temas favoritos dos dramaturgos realistas são os sociais. Percebe-se assim que o teatro Realista seguiu com exatidão o “molde” estabelecido pelas obras literárias. No Brasil, as peças retratam muitas vezes as baixas classes, com forte crítica aos problemas sociais; trabalhadores e pessoas simples são alguns dos protagonistas favoritos.

Principais Autores:
Alexandre Dumas Filho: é o primeiro representante dessa fase no teatro. Sua obra “A Dama das Camélias” (da qual tratamos na seção “Propaganda da Literatura Realista”) foi transformada em uma peça de cinco atos, na qual há destaque para a pressão social sofrida pelos protagonistas. A questão central que norteia toda a peça é: se Jesus perdoou Maria Madalena, o que autoriza a sociedade a condenar as cortesãs? Esses traços críticos fazem da encenação de “A Dama das Camélias” uma das obras-primas do teatro Realista.



Henryk Ibsen: norueguês, tem por temas favoritas a discussão da situação social feminina, os interesses comerciais, a desonestidade administrativa e a hipocrisia burguesa.


Há grande destaque para os autores russos, do período, como Nikolai Gogol, diretor que, em geral, satiriza a corrupção e o emperramento burocrático.


Alguns roteiristas russos preferiam retratar o ambiente da província e a paz dos indivíduos diante da rotina do cotidiano, como Anton Tchekhov (cujos contos mostram o cotidiano do povo russo; em suas obras-primas teatrais, retrata-se majoritariamente o declínio da burguesia russa. Dentre suas peças, destacam-se “A gaivota” e “O jardim das cerejeiras”). Outros autores davam mais importância ao folclore cultural e às relações na sociedade.


Também merece destaque Konstantin Stanislavksi, que, junto a Nemorovitch-Dantchenko, cria o Teatro de Arte de Moscou.

No teatro brasileiro, importantes autores como Machado de Assis, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Artur de Azevedo, Quintino Bocaiúva e França Júnior contribuíram com o teatro. As principais encenações brasileiras são “Quase Ministro”, de Assis; “O Demônio Familiar”, de Alencar; e “Luxo e Vaidade”, de Macedo.



Encenação de “O Demônio Familiar”, de Alencar

24 de março de 2008

PROPAGANDA DA LITERATURA REALISTA

A MULHER NA LITERATURA REALISTA





O Realismo revolucionou a aparência da mulher na literatura. Enquanto na grande maioria das outras escolas literárias sua existência era ignorada, ou completamente idealizada (a mulher tinha de se encaixar nos padrões considerados perfeitos; não era um ser com vontade própria), com a escola realista passou a ser retratada de maneira mais próxima da realidade. Embora quase sempre a mulher surja como dissimulada, capaz de manipular o homem, pela primeira vez é um ser com verdadeira alma, com características particulares.
Autores realistas de todo o mundo aderiram a essa nova visão da mulher. Escolhemos algumas obras em que as mulheres eram particularmente peculiares, todas obras de grande repercussão.


MADAME BOVARY


“No fundo de seu coração, ela esperava que algo acontecesse. Ela não sabia o que seria, o que o vento lhe traria. Mas toda manhã ao acordar, ela esperava que aquele fosse o dia. Escutava a todos os sons, observava cada nova face na rua fora de casa esperando por um sinal, e não entendia porque nada acontecia. E ao pôr-do-sol, mais triste que nunca, ela aguardaria esperançosa a chegada do próximo dia”.



“Madame Bovary” é considerada a primeira obra do Realismo Mundial. Devido ao seu caráter ousado para a época, seu autor, Gustave Flaubert, foi levado aos tribunais, o que simplesmente aumentou o sucesso da obra. Flaubert foi acusado de ofensa à moral e à religião, e defendeu-se afirmando que ele próprio era Emma Bovary. Declarou que seu livro não constituía uma apologia ao adultério, mas uma crítica à burguesia da época.

O livro conta a história de Emma Bovary, uma pequeno-burguesa do campo, casada com Charles, um médico. Emma encontra-se permanentemente descontente, pois sente que não pertence àquele lugar – era muito bonita e requintada para estar ali no campo, onde ninguém jamais a conheceria. Só encontra alegria na leitura de romances, imaginando-se como a protagonista desses... O marido, apesar de amá-la muito, era profundamente entediante; assim, Emma passa a procurar a felicidade em outros homens, que provam ser tão insatisfatórios quanto Charles. Emma também gasta fortunas em vestidos, jóias... o que leva à ruína de seu marido. Muitos comparam-na a Dom Quixote: de tanto ler novelas de cavalaria, acabou lutando com moinhos... Eis a história de Emma: sua destruição, sua “loucura”, foi causada pela impossibilidade de fazer de sua vida um livro.

Provavelmente, o sucesso de “Madame Bovary” está na profunda análise psicológica que Flaubert fez de sua personagem. Emma Bovary foi uma das primeiras mulheres na literatura a ser capaz de seguir suas próprias vontades e assim levar à ruína um homem.

A DAMA DAS CAMÉLIAS


“Adeus, cara Marguerite. Não sou nem rico o suficiente para amá-la como eu gostaria, nem pobre o suficiente para amá-la como você gostaria. Esqueçamos, então: você, um nome que lhe deve ser quase indiferente; eu, uma felicidade que me é impossível”.



A obra-prima do também francês Alexandre Dumas filho é outro exemplo muito claro da mulher realista, seguidora de nada além de suas próprias vontades, mas fadada a ser produto do meio onde vive. O livro é resultado de uma experiência autobiográfica do autor, seu envolvimento com a cortesã parisiense Marie Duplessis. “A Dama das Camélias” narra o envolvimento de Marguerite Gautier, uma das cortesãs mais requisitadas de Paris, com o jovem Armand Duval. Marguerite, de origem humilde, acostumou-se a uma vida extremamente luxuosa, propiciada pelo dinheiro que recebia de seus amantes; porém, esta vida desregrada também causou-lhe uma grave doença. Armand não era rico, jamais poderia custear os luxos de Marguerite; mas oferece-lhe o amor verdadeiro do qual ela até então se privara. Seu envolvimento não será aceito socialmente. Todos acreditam que apaixonar-se por uma cortesã levaria à ruína de Armand Duval. O casal tenta a todo custo permanecer unido, mas a sociedade tem influência muito forte; o que leva ao fim trágico da obra.

A peculiaridade de “A Dama das Camélias” está em sua protagonista. Marguerite não era verdadeiramente dissimulada, não envolve-se com Armand na intenção de destruí-lo. Não era cortesã originalmente: as condições em que vivia fizeram com que entrasse nessa vida. A história é um estudo da sociedade da época, principalmente de seu “submundo”, da vida das cortesãs – as quais embora fossem comumente vistas como causadoras da discórdia familiar e da ruína, muitas vezes sentiam-se vazias e infelizes.

ANNA KARENINA

“ – Talvez me tenha enganado – disse Karenin.
- Não – disse Anna devagar, olhando com desespero para o rosto frio dele – você não se enganou. Estou escutando você, mas pensando nele. Eu o amo e lhe pertenço. Eu odeio você, temo você... faça o que quiser comigo”.




Junto a “Guerra e Paz”, “Anna Karenina” é a principal obra de Leon Tolstoi. A trama gira em torno do caso extra-conjugal da protagonista. Rica, bonita e popular, Anna encontra-se presa à cruel frieza do marido, Karenin. Quando visita o irmão em Moscou, conhece o conde Vronsky; a paixão entre os dois é avassaladora, e seu envolvimento não permanece em segredo por muito tempo. Karenin ameaça não permitir que Anna veja seu filho nunca mais, mas ela já não pode afastar-se de Vronsky, e vai procurar a felicidade junto a ele. Mas a paixão entre os dois, tão intensa a princípio, vai encontrando dificuldades com o passar do tempo... e Anna vai aos poucos descobrindo que terá de pagar sua felicidade com a distância do filho, o vício do ópio, e, talvez, a própria vida.


Tolstoi foi possivelmente o representante máximo do Realismo russo. Criava personagens baseados em pessoas reais de sua época, e seu sucesso talvez deva-se a sua incomparável capacidade de criar minuciosos relatos psicológicos do ser humano, vinculados a um destino determinado pela realidade social. Em “Anna Karenina”, analisa uma tragédia amorosa com base em questões morais. Acreditaria-se que Anna tinha tudo para ser feliz, e, no entanto, o que tinha não lhe era suficiente; ao procurar ir além, acabou arruinando-se. Tolstoi analisa profundamente a imagem da família nesta obra, o que fica claro já na primeira frase do livro: “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

SENHORA

“- A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas. Quando a recebi já conhecia o mundo e suas misérias; já sabia que a moça rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa riqueza servirá para dar-me a única satisfação que ainda posso ter nesse mundo. Mostrar a esse homem, que não me soube compreender, que mulher o amava, e que alma perdeu”.


O brasileiro “Senhora”, de José de Alencar, segue uma linha do Realismo um pouco diferente da das outras obras que já tratamos acima. O calculismo, a dissimulação da protagonista Aurélia Camargo não se deve ao seu envolvimento com vários homens, e sim ao fato de desejar humilhar o homem que a deixou por um dote maior. Aurélia era pobre, e apaixona-se por Fernando, que a princípio retribui seu amor; mas quando este precisa de dinheiro, promete casamento a Adelaide Amaral, que oferecia um dote razoável. Aurélia recebe uma herança imensa, e com ela arranja seu casamento com Fernando, só para ter o prazer de vingar-se: ele sempre teria seu orgulho ferido. Após o casamento, diversos episódios se sucedem, até que o casal finalmente possa se entender.


José de Alencar não visa elaborar discussões morais, e sim atacar uma instituição social em particular: o casamento – ao qual importava mais a união de duas fortunas que a de duas pessoas. Foi o principal autor realista brasileiro a traçar perfis femininos, como ocorre em “Senhora” e “Lucíola”; ambos os livros fazem parte de sua fase realista, pois são mais críticos que idealizadores (como as obras de sua fase romântica). Aurélia Camargo foge àquilo que se esperaria de uma moça da época: não era ingênua, iludida. Sabia seu valor e tomaria qualquer medida para que os outros também o reconhecessem.



23 de março de 2008

RESENHA – “A CIDADE E AS SERRAS”






“A Cidade e as Serras” é a última grande novela de Eça de Queirós. Foi publicada em 1901, um ano após a morte do autor, tanto que boa parte do livro não foi revista por ele, encarregando-se desse serviço seu amigo Ramalho Ortigão – por isso pode-se perceber uma certa diferença de estilo entre “A Cidade e as Serras” e as outras obras de Eça. Apesar disto, é considerado um dos mais interessantes livros de Eça de Queirós, por trazer marcas muito fortes de seu próprio tempo, mas também por conter um aspecto muito atual: a crítica ao culto da tecnologia.
O livro conta a história de Jacinto de Tormes, um homem extremamente civilizado, que crê só poder ser feliz cercando-se de tecnologia, e que considera a vida no campo medíocre. Seu amigo Zé Fernandes narra sua saga, detalhando a metamorfose de Jacinto, quem, descontente na artificialidade da cidade, resolve trasladar-se ao campo, e lá encontra a verdadeira felicidade. A obra é composta por duas partes: primeiro, a de Jacinto na cidade, de sua crença na realização do homem através da tecnologia até seu tédio e infelicidade diante de tanto materialismo; e a segunda parte narra a chegada de Jacinto às serras portuguesas, sua dificuldade em acostumar-se à vida simples e, enfim, sua felicidade suprema, sua abdicação à vida urbana, aproveitando somente alguns de seus aspectos tecnológicos.
Nota-se a crítica de Eça de Queirós em diversos pontos da obra. Por exemplo, toda a parte inicial é uma espécie de “julgamento hostil” da vida urbana, buscando evidenciar que num espaço extremamente civilizado, como era a Paris daquela época, o homem acaba isolado, pois se rodeia de pessoas superficiais, fúteis; todas as relações baseiam-se em interesses, vive-se em função de mostrar-se adequado à sociedade. Jacinto vivia rodeado por uma galeria de tipos sociais: mulheres pouco profundas, em cujos rostos formavam-se rugas graças à ânsia de sempre sorrir, para mostrarem-se felizes aos outros; cientistas que elaboravam teorias e escreviam livros para fazerem-se conhecidos; maridos que davam mais importância aos negócios que às próprias esposas, e assim por diante. A vida de Jacinto baseava-se em compromissos sociais com essa gente, para quem conviver com um homem rico como ele era garantia de status.
Eça de Queirós faz descrições minuciosas dos ambientes urbanos, sempre dando um toque de ironia, de modo a deixar clara a inutilidade de tudo aquilo. Zé Fernandes, advindo da serra, em geral não se deixa “contaminar” por toda aquela superficialidade; chega a apaixonar-se por uma moça da cidade, com quem se envolve, até o momento em que ela o deixa por outro homem mais rico – sua frustração o convence ainda mais de que aquela gente não tinha nada de interessante a oferecer. Assim, Zé Fernandes é praticamente a única pessoa que nota a crescente insatisfação de Jacinto. Este inicialmente acreditava que “suma ciência x suma potência = suma felicidade”; tentava a todo custo aplicar esta fórmula em sua vida, e, no entanto, vai se tornando cada vez mais entediado e infeliz. Quando Jacinto tem de voltar para Portugal, para visitar a reconstrução do túmulo de seus antepassados, é tomado por uma espécie de alívio, por poder escapar da cidade.
Não crendo ser capaz de sobreviver sem seus aparatos tecnológico, Jacinto envia tudo o que pode a Tormes, para que lá ficasse tão bem instalado quanto em sua própria casa; e, junto a Zé Fernandes, parte para a serra. Devido a contratempos, quando chegam a Portugal, não têm mais nada: suas malas foram acidentalmente enviadas para a Espanha, e as reformas na casa ainda não estavam acabadas. Tudo o que resta a Jacinto da civilização é a roupa do corpo e sua bengala. Neste ponto, Eça de Queirós utilizou-se de um significado simbólico: Jacinto entra em Portugal “nu”, e essa “nudez” remete a um renascimento – deixou para trás o Jacinto materialista e tem a chance de tornar-se alguém melhor em Portugal. Aos poucos, Jacinto encontra sua utilidade nas serras, casa-se com Joaninha, prima de Zé Fernandes e encontra um equilíbrio entre o campo e a civilização: leva para Tormes somente a parte boa, útil, da tecnologia.
Pode-se dizer que “A Cidade e as Serras” constitui uma apologia à vida no campo e uma caricatura da cidade. A cidade surge como símbolo do progresso, mas também de futilidade e de infelicidade; enquanto as serras representam a naturalidade, a sensibilidade. Mais de um século após sua publicação, a essência do livro ainda pode ser aplicada ao mundo atual – as pessoas esquecem-se de valores fundamentais, como a família e a amizade, em função da tecnologia, e nem por isso são mais felizes; pelo contrário, nota-se hoje uma depressão sem precedentes. Talvez o que falte a esses “Jacintos” seja a sua “Tormes”: o retorno às origens, àquilo que realmente importa.
Eça de Queirós é um dos mais renomados autores portugueses. “A Cidade e as Serras” pertence à sua terceira fase, a da maturidade: como sempre, faz críticas audaciosas e utiliza-se de ironia corrosiva, mas tem um “ar” mais esperançoso, mais otimista. Eça critica para corrigir; espera que, ao entenderem a mensagem, seus leitores voltem-se para uma vida mais natural, mais autêntica. Em suas outras obras, Eça sofre grande influência do autor francês Flaubert, autor de “Madame Bovary”; tal influência pode ser claramente notada em “O Primo Basílio”. Dentre as outras obras-primas do autor português, estão “O Crime do Padre Amaro” e “Os Maias”.